O Arbítrio e a Liberdade
Dallin H. Oaks
Traduzido de Dallin H. Oaks, "Agency and Freedom" in A Book of Mormon Treasury: Gospel Insights from General Authorities and Religious Educators (Provo and Salt Lake City: Religious Studies Center and Deseret Book, 2003), 32-46.
O Élder Oaks É Membro do Quórum dos Doze Apóstolos
Élder Dallin H. Oaks
O segundo livro de Néfi, o foco desta conferência, dá-nos algumas das percepções doutrinárias mais importantes acerca do significado do arbítrio no plano do evangelho. Decidi, portanto, falar a respeito do arbítrio e a liberdade.
Nas escrituras os termos são arbítrio e livre. Quando nos referimos ao arbítrio, às vezes combinamos as duas palavras e dizemos livre arbítrio. Por vezes usamos esta locução para denominar tanto a liberdade como o arbítrio. Até nas escrituras às vezes livre pode significar arbítrio e outras vezes: liberdade.
Dada esta confusão, preciso definir os vocábulos que empregarei. Quando digo arbítrio, refiro-me ao exercício da vontade, o poder de escolher. Quando digo liberdade, quero dizer o poder e privilégio de fazer nossas próprias escolhas. Isto inclui tudo desde os pensamentos, como ódio, até as ações, como correr.
Na primeira parte desta mensagem palestrarei acerca da doutrina da Igreja. Na segunda parte descreverei a aplicação de tal doutrina.
I. Doutrina
A irmã Oaks é quem melhor me critica. Ele me diz que quando falo de doutrina meus discursos são muito tediosos, melhores para ler do que ouvir. Talvez ajude se eu fizer um esboço dos noves conceitos, baseados nas escrituras, de que falarei:
- Antes do mundo existir, existíamos na presença de Deus.
- O arbítrio é um dom de Deus.
- Tínhamos arbítrio na existência pré-mortal.
- Lá Satanás apresentou um plano que nos teria negado o arbítrio.
- Quando Deus rejeitou o plano de Satanás, Satanás e aqueles que o seguiam rebelaram e foram expulsos do céu.
- Seguindo o plano de Deus, Adão e Eva fizeram a escolha que causou a Queda, assim sujeitando a humanidade à mortalidade e ao pecado deste mundo.
- Estamos aqui para sermos provados e isso não pode acontecer sem oposição em todas as coisas.
- Para proporcionar tal oposição, permite-se a Satanás que nos tente persuadir a exercer nosso arbítrio para escolher o mal.
- Se escolhermos o mal e não nos arrependermos, por fim poderemos tornar-nos cativos de Satanás.
Para apreciar o significado do conhecimento complementar do evangelho que foi restaurado nesta dispensação, notem quantas verdades essenciais do evangelho são ou reveladas ou ilucidadas no Livro de Mórmon, especialmente em 2 Néfi, e em Doutrina e Convênios e na Pérola de Grande Valor.
- Antes da criação do mundo, existíamos na presença de Deus (vide D&C 93:29). Abraão viu que Deus estava no meio destes espíritos e escolheu alguns deles para serem seus governantes (vide Abraão 3:23). Não sabemos muito da existência pré-mortal. As escrituras se referem às vezes a “inteligências” pré-existentes e às vezes a “espíritos” pré-existentes (vide Moisés 6:36; Abraão 3:18-23; 5:7; D&C 93:29-33). Para os fins deste discurso não será necessário distinguir entre os dois. O importante é saber que na existência pré-mortal tínhamos uma identidade distinta e vivíamos na presença de Deus.
O arbítrio, o poder de escolha, é um dom de Deus. Como consta em 2 Néfi 2:16, “O Senhor Deus concedeu, portanto, que o homem agisse por si mesmo.” E ainda, “Animai-vos, portanto, e lembrai-vos de que sois livres para agir por vós mesmos-para escolher o caminho da morte eterna ou o caminho da vida eterna” (2 Néfi 10:23). E na revelação moderna o Senhor disse: “Eis que lhe permiti que fosse seu próprio árbitro” (D&C 29:35).
O Profeta Joseph Smith descreveu o arbitrio como sendo “a livre independência da mente que os céus graciosamente concederam à família humana como um de seus dons mais especiais.” [1] A palavra “livre” também é utilizada para descrever o arbítrio num hino que os Santos dos últimos Dias têm cantado desde a publicação do primeiro hinário em 1835:
A alma é livre para agir
E seu destino decidir;
Suprema lei deixou-nos Deus:
Não forçará os filhos seus.
Apenas faz-nos escolher
O bem ou mal neste viver;
Conselhos dá-nos com amor,
Cuidado, graças e favor. [2]- Tínhamos o arbítrio na existência pré-mortal. É evidente pelo fato de que mais de um plano foi apresentado no Conselho nos Céus e que um terço da hoste celestial optou por seguir Satanás e rebelar contra o Pai. [3]
O plano de Satanás, apresentado na existência pré-mortal, ter-nos-ia tirado o arbítrio. Durante o chamado Conselho nos Céus, o Pai nos explicou as condições do próximo passo no progresso de seus filhos espirituais. Precisavam receber um corpo mortal e era necessário que Deus “os provasse para ver se iriam fazer todas as coisas que o Senhor Deus lhes ordenasse” (Abraão 3:25).
Satanás chegou perante Deus com esta proposta: “Eis-me aqui, envia-me; serei teu filho e redimirei a humanidade toda, de modo que nenhuma alma se perca; e sem dúvida eu o farei; portanto dá-me tua honra” (Moisés 4:1). Mas o Filho Amado, nosso Salvador, que foi “escolhido desde o princípio” (Moisés 4:2), disse ao Pai: “Eis-me aqui, envia-me” (Abraão 3:27) e “Pai, faça-se a tua vontade e seja tua a glória para sempre” (Moisés 4:2).
No livro de Moisés, Deus descreve o esforço de Satanás:
“Portanto, por ter Satanás se rebelado contra mim e procurado destruir o arbítrio do homem, o qual eu, o Senhor Deus, lhe dera; e também por querer que eu lhe desse meu próprio poder, fiz com que ele fosse expulso pelo poder do meu Unigênito;
“E ele tornou-se Satanás, sim, o próprio diabo, o pai de todas as mentiras, para enganar e cegar os homens e levá-los cativos segundo sua vontade, sim, todos os que não derem ouvidos a minha voz” (Moisés 4:3-4).
O método de Satanás de assegurar que “nenhuma alma se perca” (Moisés 4:1) “destruiria o arbítrio do homem” (Moisés 4:3). Conforme seu plano, Satanás seria nosso mestre e nos teria levado “cativos de sua vontade” (Moisés 4:4). Sem o poder de escolher, teríamos sido meros robôs ou bonecos de engonço nas suas mãos.
Quando Deus rejeitou o plano de Satanás, Satanás e seus seguidores rebelaram e foram expulsos dos céus. A contenda que as escrituras chamam “guerra no céu” (Apocalipse 12:7) se trata das tentativas de Satanás de usurpar o poder de Deus e destruir o arbítrio dos filhos de Deus. Um terço da hoste do céu exerceu seu arbítrio em seguir a Satanás. A Bíblia descreve isso em referências ocultas ao esforço de Satanás de exaltar-se e à guerra em que o dragão e seus adeptos foram expulsos dos céus (vide Isaías 14:12-15; Apocalipse 12:7-9; Abraão 3:28). O evento está mais bem explicado na revelação moderna.
“E aconteceu que Adão, sendo tentado pelo diabo-pois eis que o diabo existiu antes de Adão, pois rebelou-se contra mim, dizendo: Dá-me a tua honra, a qual é o meu poder; e também uma terça parte das hostes do céu ele afastou de mim por causa do arbítrio que possuíam;
“E eles foram lançados abaixo e assim surgiram o diabo e seus anjos” (D&C 29:36-37; vide também D&C 76:25-26).
No seu grande poema “Imanuel-um Idílio de Natal,” o élder Orson F. Whitney descreve este evento no conselho dos Deuses quando “O destino dos mundos não nascidos pendurava trêmulo na balança.” Um se levantou:
Eis um ser de graça e poder,
Obediente a seu Senhor.
O sol não pôde exceder
Sua luz e seu esplendor,
Seus cabelos da cor da neve
Como a de geada alpina.
Este falou, ora solene,
Houve calma repentina:
“Pai”-a voz do filho sussurra,
Mas clara e bem proferida
Como água de fonte pura
Refrigerando-lhes a vida-
“Ó Pai! Já que um tem que morrer,
Sim, para teus filhos resgatar
Quando na Terra forem viver
Aqueles que tu fores criar
E o arcanjo Miguel cair
Para que existamos, por fim,
Tu mandarás um Salvador.
Eis-me aqui, envia a mim!”
Não te peço nenhum galardão,
Senão aquilo que me ordenas:
Cabe a mim a expiação,
A ti as glórias sempiternas!”
Cessou, se sentou. Subiu outro,
Assim de um aspecto infernal,
De cabeça ereta como
Montanha acima do temporal.
Tão formoso e tão brilhante,
De olhos a dardejar fogo,
De sorriso mui arrogante
E ira contida. Eis o jogo:
“Deixa-me ir,” gritou ousado,
Mal escondendo o desdém,
“Teu povo será resgatado,
Não se perderá um só, ninguém.
Negar-lhes-ei, pois, o arbítrio
De decidirem seu destino.
De prêmio exijo direito
De lá sentar-me em teu trono!”
Parou Lúcifer. Todos quietos,
Só silêncio e preocupação,
Todos os olhos ora fitos
No genitor da perdição.
Sim, tudo silencioso.
E aí, como se fora trovão,
Veio a voz do Todo-Poderoso:
“MANDAREI O PRIMEIRO, ENTÃO!”
Feito! Mas ali na multidão
Já se levantavam tumultos
Feitos os ventos de um furacão
Ou ondas do mar em comoção.
Fez-se guerra, o céu estremeceu.
Os anais constam além do véu
Que a Cristo o Pai elegeu,
E o rebelde caiu do céu. [4]Conforme o plano de Deus, Adão e Eva fizeram a escolha que causou a Queda, sujeitando a humanidade à mortalidade e aos pecados do mundo. “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás [o Senhor disse a Adão e Eva], não obstante, podes escolher segundo sua vontade, porque te é dado; mas lembra-te de que eu o proíbo, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” ( Moisés 3:17). Adão e Eva puderam levar a efeito a Queda por livre escolha porque tinham alternativas e tinham o arbítrio, cuja essência é descrita nestas palavras: “Podes escolher segundo sua vontade, porque te é dado.”
Desta forma vemos que foi um passo necessário aquilo que se chama “a Queda” e “a transgressão de Adão” que resultou do exercício do dom de arbítrio por nossos primeiros pais. Em 2 Néfi, Leí explicou: “Mas eis que todas as coisas foram feitas segundo a sabedoria daquele que tudo conhece. Adão caiu para que os homens existissem; e os homens existem para que tenham alegria” (2 Néfi 2:24-25).
Junto com a Queda vieram a mortalidade e a oportunidade de sermos testados. O Senhor proclamou que aos filhos de Adão foi dado “distinguir o bem do mal, de modo que são seus próprios árbitros” (Moisés 6:56). Alma ensinou que com a Queda os homens se tornaram “como deuses, discernindo o bem do mal, colocando-se em condições de agir segundo sua vontade e prazer, para fazer o mal ou para fazer o bem” (Alma 12:31; vide também 42:7).
De forma semelhante o profeta Samuel ensinou: “Pois eis que sois livres; tendes permissão para agir por vós mesmos; porque eis que Deus vos deu o conhecimento e vos fez livres” (Helamã 14:30). Observem que neste ensinamento o vocábulo livre se refere ao arbítrio.
Estamos aqui para sermos provados e isto não pode ocorrer sem que haja oposição em todas as coisas. Quanto a este assunto, 2 Néfi aumenta nosso entendimento. O pai Leí ensinou a seu filho Jacó que “é necessário que haja uma oposição em todas as coisas. Se assim não fosse, meu primogênito no deserto, não haveria retidão nem iniqüidade nem santidade nem miséria nem bem nem mal. Portanto é preciso que todas as coisas sejam compostas em uma” (2 Néfi 2:11).
Em outras palavras, se não tivéssemos oposição, não poderíamos exercer nosso arbítiro através de fazer escolhas. “Portanto,” explicou o pai Leí, “o Senhor Deus concedeu que o homem agisse por si mesmo; e o homem não poderia agir por si mesmo a menos que fosse atraído por um ou por outro” (2 Néfi 2:16).
Sem uma oposição em todas as coisas, não poderíamos alcançar a retidão. Todas as coisas seriam “compostas em uma,” ou seja, uma mistura sem distinção entre a iniqüidade e a santidade. Naquele estado de inocência, os filhos de Deus não “sentiriam alegria por não conhecerem a miséira; não fariam o bem por não conhecerem o pecado” (2 Néfi 2:23). Como lemos nas escrituras modernas: “E é necessário que o diabo tente os filhos dos homens, ou eles não poderiam ser seus próprios árbitros; porque, se nunca tivessem o amargo, não poderiam conhecer o doce” (D&C 29:39).
Para proporcionar tal oposição, permite-se a Satanás que tente persuadir-nos a usar nosso arbítrio para escolher o mal. Em 2 Néfi 2:26, Leí declara que o Messias virá “na plenitude dos tempos para que possa redimir os filhos dos homens da Queda.” Então ele nos dá esta explicação importante:
“E porque são redimidos da queda tornaram-se livres para sempre, distinguindo o bem do mal; para agirem por si mesmos e não para receberem a ação, salvo se for pelo castigo da lei no grande e último dia, segundo os mandamentos dados por Deus.
“Portanto os homens são livres segundo a carne; e todas as coisas de que necessitam lhes são dadas. E são livres para escolher a liberdade e a vida eterna por meio do grande Mediador de todos os homens, ou para escolherem o cativeiro e a morte, de acordo com o cativeiro e o poder do diabo; pois ele procura tornar todos os homens tão miseráveis como ele próprio” (2 Néfi 2: 26-27).
“Livres. . . para agirem por si mesmos” e “livres para escolherem” se referem ao arbítrio. “Livres segundo a carne” se refere à liberadade, como demonstrarei depois.
Se escolhermos o mal e não nos arrependermos, poderemos tornar-nos, por fim, cativos de Satanás. A afirmação de Leí de que somos livres para “agir[mos] por [nós] mesmos e não para receber[mos] a ação” tem uma exceção: “Salvo se for pelo castigo da lei no grande e último dia” se é que escolhemos “cativeiro e morte, de acordo com o cativeiro e o poder do diabo” (2 Néfi 2:26-27). Aí ele implora ao filhos que não escolham “a morte eterna, conforme a vontade da carne e o mal que nela há, que dá ao espírito do diabo poder para escravizar, para levar-vos ao inferno, a fim de reinar sobre vós em seu próprio reino” (2 Néfi 2:29).
De modo semelhante Amuleque ensinou: “Pois eis que, se deixastes o dia do arrependimento para o dia da vossa morte, eis que vos tendes submetido ao espírito do diabo e ele vos sela como seus; portanto o Espírito do Senhor se apartou de vós e não tem lugar em vós; e o diabo tem sobre vós todo o poder e este é o estado final dos iníquos” (Alma 34:35).
Resumindo, então, o arbítrio, o poder de escolher, é um dom de Deus conferido a Seus filhos e já exercido por eles na vida pré-mortal. É uma precondição essencial ao progresso adicional que buscamos na mortalidade. Porém, não se pode exercer o arbítrio a não ser que haja uma oposição em todas as coisas. Esta oposição é provida por Satanás, o qual havia procurado destruir nosso arbítrio. Seu esforço continua. Ele procura-nos persuadir a fazer o mal e a fazer escolhas que lhe proporcionará o domínio que buscara na existência pré-mortal, o de possuir poder sobre nós, para levar-nos cativos conforme seu bel-prazer.
II. Applicação Prática
Agora discutirei algumas aplicações práticas destes princípios provindos das escrituras.
Primeiro, devido ao fato do arbítrio ser um dom concedido por Deus como precondição do propósito da provação mortal, nenhuma pessoa nem organização poderá tirar-nos o arbítrio na mortalidade.
Segundo, o que poderá ser-nos tirado ou reduzido pelas condições da mortalidade é nossa liberdade, ou seja, o poder de agir segundo nossas escolhas. O arbítrio é absoluto, no entanto, devido às circunstâncias da mortalidade, a liberdade é sempre condicional.
A liberdade pode ser limitada ou negada 1) por leis físicas, inclusive as limitações físicas com que nascemos, 2) por nossas próprias ações e 3) pelas ações dos outros, inclusive governos.
Leí ensinou a seu filho Jacó que “os homens são livres [têm liberdade] segundo a carne” (2 Néfi 2:27). Por exemplo, na carne somos sujeitos à lei da gravidade. Se eu resolver segurar uma viga do teto do Centro Marriott da Universidade Brigham Young e lá ficar pendurado mas depois largar, não terei liberdade de escolher uma queda suave. Tampouco posso correr por uma parede de tijolos.
A perda de certas liberdades limita nosso poder de agir segundo nossas escolhas, mas não nos nega o arbítrio que Deus nos deu. Uma mulher que passou a maioria da vida restrita a uma cadeira de rodas exprimiu este pensamento num poema. Annie Johnson Flint escreveu:
Não posso caminhar, todavia posso voar,
Nenhum teto pode das estrelas me privar.
Não há prédios que possam me encarcerar,
Nem com fechaduras e grades me barrar.
Nenhum quarto estreito pode meus pensamentos limitar,
Nem cadeados e correntes a mente segurar;
E por estas paredes que me cercam no lar,
Uma fuga minha alma pode sempre dar. . .
E quando o dia tão prolongado findar,
O Livro mais precioso nas mãos vou segurar,
E no silêncio do anoitecer ouço ecoar
As palavras do meu Pai para me inspirar.
Neste momento, embora presa, livre sou,
E para o além voa meu pensamento,
Acima da noite terrestre sobe o coração
Levado pelas asas aquilinas da fé e da oração. [5]
Outras limitações à liberdade são impostas por nós mesmos, como a imobilidade que se dá quando apertamos o cinto de segurança ou o compromisso que assumimos ao firmar um contrato. Nestes casos limitamos uma liberdade para alcançar uma outra maior e mais importante.
Muitas vezes a perda de liberdade é-nos imposta por terceiros. A ciência de governar consiste em contemplar procedimentos e restrições e decidir até que ponto os representantes oficiais de um grupo de cidadãos pode impor restrições à liberdade de outro grupo. As decisões referentes a quanto poder tem o governo de limitar a liberdade de indivíduos ficam entre as mais difíceis que enfrentamos na sociedade organizada. Quanto podem as leis de propriedade limitar o direito de uma pessoa de usar sua propriedade? Quantos impostos pode o governo arrecadar e para que fins podem aplicar aquele dinheiro? Até que ponto pode um cidadão prejudicar-se a si mesmo por auto-mutilação ou abuso de drogas? São todas perguntas acerca da liberdade.
Temos que aceitar algumas limitações a nossa liberdade impostas pelo governo para que nós que moramos numa comunidade possamos ter vida e liberdade e buscar a felicidade. Uma condição em que houvesse liberdade individual desinibida permitiria que os fortes oprimissem os fracos. Permitiria que os desejos extremos de um indivíduo limitassem a liberdade de muitos.
A interferência com a nossa liberdade não nos priva do arbítrio. Quando Faraó colocou José na prisão, restringiu a liberdade de José mas não lhe tirou o arbítrio. Quando Jesus expulsou os cambistas do templo, interferiu com a liberdade deles participarem de certa atividade em certo lugar a certa hora, mas não lhes tirou o arbítrio.
O Senhor nos disse numa revelação moderna que Ele estabeleceu a constituição dos Estados Unidos “para que todo homem aja, em doutrina e princípio relativos ao futuro, de acordo com o arbítrio moral que lhe dei” (D&C 101:78). Em outras palavras, Deus estabeleceu a constituição para nos dar a liberdade política essencial e necessária para que agíssemos segundo nossas escolhas pessoais no que se refere ao governo civil. Esta revelação mostra a distinção entre o arbítrio (o poder de escolher), que Deus nos deu, e a liberdade, ou seja, o direito de agir segundo nossas escolhas, o qual é protegido pela constituição e leis da pátria.
A liberdade, obviamente, é de grande importância mas, como estes exemplos mostram, a liberdade é sempre restrita na mortalidade. Por conseguinte, quando opomos a perda de uma liberdade, não devemos argumentar que se vai perder o arbítrio, porque é impossível perdê-lo, conforme nossa doutrina. Em vez disso, devemos focalizar-nos na legalidade ou sabedoria da restrição proposta à nossa liberdade.
Terceiro, nossa doutrina nos assegura que Satanás, que procurou tirar-nos o arbítrio na pré-existência, não pode tirar-nos o arbítrio nesta vida. O Profeta Joseph Smith ensinou que o diabo não pode forçar os homens a fazerem o mal. Ele só “terá poder sobre nós à medida que nós lhe permitirmos.” [6] O élder James E. Faust esclareceu esta idéia quando disse: “Ceramente ele [Satanás] pode-nos tentar e enganar mas não mantém nenhuma autoridade sobre nós a não ser que o permitamos.” [7]
Quarto, como estes ensinamentos sugerem, Satanás ainda está procurando tirar-nos o arbítrio por meio de persuadir-nos a render-lhe voluntariamente nossa própria vontade.
Este assunto tem um fascínio mórbido para a humanidade. A antiga lenda alemã de Fausto trata de um homem que vendeu a alma para o diabo em troca de conhecimento e poder. Também é o tema de “O Diabo e Daniel Webster,” um conto de Stephen Vincent Benet. Uma variedade de práticas modernas tendem para a rendição da alma e levam conseqüências perigosas. Como o élder Faust nos advertiu: “Deve-se evitar como se fosse praga o mal da adoração ao diabo, da feitiçaria, da bruxaria, de encantos mágicos, do vodu e de magia negra e todas as outras formas de demonismo.” [8]
Quinto, devemos também evitar qualquer prática em que uma pessoa procura render até uma partezinha de sua vontade a outra pessoa ou em que outra pessoa procura subjugar nossa vontade. Sejam o meios químicos, psicológicos, eletrônicos ou outros ainda não inventados, tais tentativas de nos tirar o arbítrio são contra o plano celestial e só servem para avançar o plano do adversário. O arbítrio, o poder de escolher e dirigir nossos pensamentos e ações, é uma dádiva de Deus e devemos resistir a qualquer tentativa de comprometê-lo.
Sexto, devemos evitar qualquer prática que vicie. Tudo que vicia compromete nossa vontade. Sujeitar nossa vontade aos impulsos irresitíveis impostos por qualquer tipo de vício serve os propósitos de Satanás e subverte os do Pai Celestial. Isso se aplica a drogas viciogênicas (tais como narcóticos, álcool, nicotina e cafeína), práticas viciogênicas tal como o jogo e outros comportamentos que viciam. Podemos evitar o vício através de guardar os mandamentos de Deus.
Sétimo, devemos estar cientes de que algumas pessoas são mais propensas a certos vícios do que outras. Talvez tal tendência seja inata como a infermidade sem nome a que o apóstolo Paulo se refere como “um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear, e fim de não me exaltar [sem medida]” (2 Coríntios 12:7). Certas pessoas têm paladar para nicotina e se viciam facilmente ao fumo. Outras não podem tomar um drinque de vez em quando sem serem impelidos ao alcoolismo. Outras pessoas experimentam o jogo e se tornam jogadores compulsivos.
Estas pessoas, como diz o velho ditado, “nasceram assim,” talvez. Mas o que significa isso? Será que significa que as pessoas que têm tendências fortes e propensidades não têm escolha nem arbítrio nestes casos? Nossa doutrina nos ensina o contrário. Independente das tendências e disposição de uma pessoa, sua vontade não se restringe. Seu arbítrio não tem precondições. é sua liberdade que é prejudicada. Certas pessoas são mais livres destas tendências porque quando com imprudência experimentam as tentações, parecem imunes ao vício. Porém, independente da medida de liberadade que cada um tem, somos responsáveis pela maneira em que exercemos o arbítrio.
Como ensinou Leí, na vida mortal somos apenas livres “de acordo com a carne” (2 Néfi 2:27). A maioria de nós nasceu com “espinhos na carne,” sendo alguns mais visíveis que outros, alguns mais sérios que outros. Todos nós parecemos estar propensos a uma infermidade ou outra, mas sejam quais forem nossas fraquezas, temos o arbítrio e o poder de controlar nossos pensamentos e ações. Tem que ser assim. Deus já falou que aos olhos dele somos responsáveis pelo que fazemos e pensamos, portanto nossos pensamentos e ações devem ser controláveis pelo arbítrio. Depois de alcançada a idade de responsabilidade, a afirmação “eu nasci assim” não justifica nossas ações e pensamentos quando estes deixam de conformar-se com os mandamentos de Deus. Temos que viver de tal maneira que uma fraqueza mortal não nos impeça de alcançar a meta eterna.
Deus prometeu que iria consagrar nossa aflições para o nosso benefício (vide 2 Néfi 2:2). Os nossos esforços de sobrepujar as fraquezas herdadas nos darão uma força espiritual que nos servirá por toda a eternidade. Assim, quando Paulo orou três vezes para que seu “espinho na carne” fosse-lhe tirado, o Senhor replicou: “A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza.” Obediente, Paulo concluiu: “De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas; para que em mim habite o poder de Cristo. Por isso sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte” (2 Coríntios 12:9-10).
Não importa quais sejam nossas fraquezas ou tendências, elas não podem nos prejudicar na eternidade a não ser que, ao exercer nosso arbítrio, façamos ou pensemos em coisas proibidas pelos mandamentos de Deus. Por exemplo, uma propensidade ao alcoolismo afeta a liberdade da vítima de beber sem viciar-se, não obstante seu arbítrio a permite a abster-se e assim evitar a debilitação física do álcool e a danificação espiritual de estar viciado.
Oitavo, acautelem-se do argumento de que um ser não tem poder de escolher e portanto não é responsável por suas ações devido ao fato de ser impelido por fortes paixões a fazer certos atos. Esta tese é contrária aos princípios fundamentais do evangelho de Jesus Cristo.
Satanás quer que acreditemos que não somos responsáveis nesta vida. É o mesmíssimo resultado que ele queria obter pela sua contestação na vida pré-mortal. Quem insiste que não é responsável pelo exercício de seu arbítrio porque “nasceu assim” não faz caso da vitória da Guerra no Céu. Nós somos responsáveis, e se argumentarmos de outra maneira, nossas ações se tornam parte da campanha de propaganda do adversário.
A responsabilidade individual é uma lei da vida. Aplica-se tanto às leis dos homens como às de Deus. A sociedade exige aos cidadãos a responsabilidade de controlar seus impulsos para que possamos viver em sociedade civilizada. Deus exige aos seus filhos a responsabilidade de controlar-se para que possam guardar seus mandamentos e realizar seu destino eterno. A lei não desculpa ao homem estourado que se entrega ao impluso de balear aquele que o tormenta, nem ao homem ganancioso que se entrega à tentação de furtar, nem ao pedófilo que se entrega ao desejo de satisfazer suas depravações com crianças.
Suponho que é inevitável que aqueles que se entregaram ao pecado tentem justificar-se pelo argumento do “impulso irresistível.” Mas no tribunal do céu este argumento será transparente ao Grande Juiz que vê nossas ações e “conhece todos os pensamentos e intenções do coração” (Alma 18:32).
Há muito que não sabemos a respeito de quanta liberdade temos, visto que há muitos espinhos da carne que nos afligem na mortalidade. Mas isto nós sabemos: todos nós temos nosso arbítrio e Deus nos responsabiliza pela forma em que o utilizamos nos pensamentos e ações. É fundamental.
Nas revelações modernas Deus nos mandou que não nos emaranhássemos no pecado (vide D&C 88:86). Ele disse: “E saí do meio dos iníquos. Salvai-vos. Sede limpos, vós que portais os vasos do Senhor” (D&C 38:42). O princípio de responsabilidade individual e estes mandamentos de sairmos do meio dos iníquos e de sermos limpos se aplicam a um monte de circunstâncias. A nível de arbítrio e liberdade, admoesto os irmãos a aplicarem estes mandamentos da seguinte forma: Se algum dos irmãos tiver uma fraqueza ou uma propensidade para certas transgressões, especialmente as que possam ser viciogênicas, usem de seu arbítrio e liberdade para desviarem-se das circunstâncias que conduzem a tais transgressões.
Que Deus nos abençoe para que vivamos de tal modo que possamos evitar a emaranhar-nos no pecado e não comprometer nosso dom único e precioso do arbítrio. Que possamos aceitar a responsabilidade pelos nossos pensmentos e ações. Que possamos usar nosso arbítrio para fazer escolhas retas e agir de acordo sempre que houver liberdade de assim agir.
Para concluir, volto às palavras de Néfi em 2 Néfi 33, o último capítulo:
“Mas eu, Néfi, escrevi o que escrevi e considero-o de grande valor, especialmente para o meu povo. . .
“E falam asperamente contra o pecado, segundo a clareza da verdade. . .
“E se acreditardes em Cristo, acreditareis nestas palavras, porque são as palavras de Cristo e ele deu-as a mim; e elas ensinam a todos os homens que devem fazer o bem. .
“E oro ao Pai, em nome de Cristo, para que muitos de nós, senão todos, sejamos salvos no seu reino no grande e último dia” (2 Néfi 33:3, 5, 10, 12).
Notas
[1] Joseph Smith, Ensinamentos do Profeta Joseph Smith, compilado por Joseph Fielding Smith (Salt Lake City: Deseret Book, 1976), 49.
[2] “A Alma é Livre,” Hinos (Impresso no Brasil: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos últimos Dias, 1990) 149.
[3] Vide Joseph Fielding Smith, Doctrines of Salvation (As Doutrinas de Salvação) (Salt Lake City: Bookcraft, 1954) 1:64, 70.
[4] Orson F. Whitney, “Immanuel-A Christmas Idyll,” (“Imanuel-um Idílio de Natal”) em The Poetical Writings of Orson F. Whitney (Os Escritos Poéticos de Orson F. Whitney) (Salt Lake City: Juvenile Instructor Office, 1889), 136-139.
[5] Annie Johnson Flint, “My Wants” (“Os Meus Desejos”) cópia não publicada dada ao autor.
[6] Smith, Teachings (Ensinamentos), 181; vide também 187, 189.
[7] James E. Faust, “The Great Imitator” (“O Grande Imitador”), Ensign, November 1987, 35.
[8] Faust, “The Great Imitator” (“O Grande Imitador”), 33.